Dar importância ao que é importante….Prof. Carlos Martendal
Irmã Isabel da Trindade, também conhecida como Elisabeth da Trindade, monja carmelita descalça
francesa falecida em 1906 e canonizada em outubro de 2016, escreveu em uma de suas cartas:
“Mesmo ao fazermos as coisas mais comuns, nunca somos banais porque não vivemos nelas, mas
além delas” (Carta 268).
É preciso prestar atenção nas pequenas coisas, tanto que Jesus já advertia: “Quem é fiel nas
pequenas coisas será fiel também nas grandes, e quem é injusto nas pequenas, será também nas
grandes” (Lc 16,10).
Anselm Grün, doutor em Teologia, vive na Alemanha e é autor de dezenas de obras, entre as quais
“Sabedoria do deserto”, publicada pela Vozes, que contém 52 histórias de monges para uma vida
plena. Precioso presente que ganhei do caríssimo Dom Augustinho Petry, Bispo Emérito de Rio do
Sul, amigo e irmão, traz como uma de suas primeiras páginas De manhã. Lê-se assim:
“Quando levantares depois do sono, tua boca deve, inicialmente e de imediato, prestar honras a
Deus e entoar cânticos e Salmos, pois a primeira atividade na qual se liga o espírito de manhã
cedinho continua por todo o dia como a moagem num moinho, seja de trigo ou de inço (de erva
daninha). Por isso, deves ser o primeiro a jogar trigo diariamente ali dentro, antes que o teu inimigo
jogue inço.
Esse dito dos Pais (do deserto) não tem validade só para monges, mas para qualquer cristão. Não
devemos simplesmente entrar nos dias aos tropeços. Não devemos pensar primeiramente em nossa
agenda, em nossas necessidades ou em conflitos em que nos encontramos.
O primeiro pensamento deve estar dirigido a Deus. Porém, não devemos nos limitar a pensamentos,
mas verbalizar com a boca uma oração ou de imediato entoar um cântico. E verdade que
dificilmente se consegue fazer isso em prédio de apartamentos sem incomodar os vizinhos.
Mas uma palavra serena da Bíblia que verbalizarmos de forma audível certamente nos fará bem.
Também não há necessidade de ser sempre um Salmo ou uma palavra; também pode ser um gesto,
com o qual prestamos honras a Deus.
Para mim, trata-se de um bom ritual matinal quando, pela manhã, elevo os braços e abençoo o dia
com tudo o que nele há de vir sobre mim. Dessa forma, aquilo que caracterizará o dia será a bênção,
e não o medo do diálogo difícil ou do conflito que pesa sobre mim.
O dito dos Pais – que vimos no início – compara os primeiros pensamentos que nos afloram pela
manhã ao enchimento de um moinho. Aquilo que por primeiro jogarmos no moinho, isso ele moerá
durante todo o dia. Os primeiros pensamentos com os quais nos ocupamos de manhã passarão
durante todo o dia pela nossa cabeça. Por isso, faz parte da higiene da alma ter bons pensamentos
pela manhã.
Nesse contexto não devemos nos manipular e nos condicionar a ver tudo de forma positiva. Com
bons pensamentos o antigo Pai se refere, antes de qualquer coisa, à oração. Devemos dar as honras
a Deus; devemos dirigir os olhos para Ele, colocando-o no centro de nossa vida.
Ou devemos entoar cânticos piedosos, que nos passarão a acompanhar durante o dia como uma
música que não sai da cabeça. Não há necessidade de serem somente cânticos piedosos, também
podem ser canções alegres. Conheço pessoas que de manhã, debaixo do chuveiro, começam a
cantar aquilo que, no momento, lhes passa pela cabeça. Isso, de qualquer forma, tem efeito mais
benéfico do que se preocupar com a eventual superação dos problemas diários.
É de nossa responsabilidade a forma como iniciamos o dia. Para tanto são necessários rituais que
nos alegrem a cada manhã. Rituais criam um tempo sagrado, e o tempo sagrado nos pertence; a
manhã nos pertence. E se organizarmos os primeiros minutos pessoalmente, o dia inteiro nos
pertencerá; todo o dia será santificado.
Os rituais também nos colocam em contato com o espaço sagrado em nós, ao qual o mundo não
tem acesso e do qual ele não pode dispor. Isso nos dá um sentimento de liberdade e serenidade
com o qual podemos iniciar o dia.
Se pela manhã jogarmos bons pensamentos no moinho do nosso dia, então à noite teremos trigo,
que poderá ser usado para a preparação de pão. Ele nos nutrirá e fortalecerá. Se já pela manhã
jogarmos inço em nosso moinho, então de noite o resultado será algum tipo de caos. O cheiro será
ruim; nós não seremos nutridos. Antes, teremos de nos esforçar de noite para nos desfazer de todo
o inço moído” (páginas 21-23).
A primeira coisa que fazemos de manhã é A-COR-DAR, despertar. Mas, ao separar as sílabas,
também podemos descobrir neste verbo: quando desperto, DOU A COR ao meu dia. Se o pinto
cinzento, difícil, possivelmente assim será; se o pinto com cores bonitas, ele tem tudo para ser um
dia bonito.
Acostumemo-nos a dizer como o salmista: “Eu, que me tinha deitado e adormecido, levanto-me,
porque o Senhor me sustenta” (Sl 3,6). Ou como se reza no Salmo 5,4: “É a vós que eu invoco,
Senhor, desde a manhã; escutai a minha voz, porque, desde o raiar do dia, vos apresento meu
pedido e espero”.
Se de manhã pusermos trigo no moinho da nossa vida, à noite teremos pão. E dormiremos
tranquilos, como um ‘toco’, no dizer do Papa Francisco. E mais uma vez rezaremos com o salmista:
“Apenas me deito, logo adormeço em paz, porque a segurança de meu repouso vem de vós só,
Senhor” (Sl 4,9)!
Então teremos sonos felizes. Diz São Pio de Pietrelcina: “Felizes sonos! São uma feliz recuperação
para a alma pelas lutas sustentadas” (“O perfume do amor”, página 201).
Vamos colocar trigo no moinho: ele o moerá durante todo o dia e nos tornará mais aptos para o
amor. E assim cada dia de novo, porque “o amor não cansa nem se cansa”, atestava São João da
Cruz, o carmelita místico. Porque o amor é sempre belo, mesmo em meio ao sofrimento, ou talvez
especialmente em meio ao sofrimento.
Não amemos as coisas que se vão com o tempo: por exemplo, a beleza física; amemos o que o
tempo sabe embelezar como ninguém: a beleza interior! Não resisto a trazer aos seus olhos, aos
seus ouvidos, o que escreve o Papa Francisco na belíssima exortação apostólica “Amoris laetitia” –
A alegria do amor, sobre o amor na família, em seu número 128:
“A experiência estética do amor exprime-se no olhar que contempla o outro como fim em si mesmo,
ainda que o outro esteja doente, velho ou privado de atrativos sensíveis. O olhar que aprecia tem
uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz dano.”
Vem a propósito uma pequena e bonita história:
“Conta-se que um jovem caminhava pelas montanhas nevadas da velha Índia concentrado em
profundos questionamentos sobre o amor, sem poder solucionar suas ansiedades.
Ao longo do caminho, à sua frente, percebeu vindo em sua direção um velho sábio. E, porque se
demorava em seus pensamentos sem encontrar uma resposta que lhe aquietasse a alma, resolveu
pedir ao sábio que o ajudasse.
Aproximou-se e disse com verdadeiro interesse:
– Senhor, desejo encontrar minha amada e construir com ela uma família com bases no verdadeiro
amor. Todavia, sempre que vem à mente uma jovem bela e graciosa e eu a olho com atenção, em
meus pensamentos ela vai se transformando rapidamente. Seus cabelos se tornam brancos como a
neve e sua pele rósea e firme fica pálida e se enche de profundos vincos. Seu olhar vivaz perde o
brilho e parece perder-se no infinito. Sua forma física se modifica, e eu me apavoro. Desejo saber,
meu sábio, como é que o amor poderá ser eterno, como falam os poetas.
Nesse mesmo instante, aproximou-se de ambos uma jovem, envolta em luto, trazendo no rosto
expressões de profunda dor. Dirigiu-se ao sábio e disse com voz embargada:
– Acabo de enterrar o corpo de meu pai, que morreu antes de completar cinquenta anos. Sofro
porque nunca poderei ver sua cabeça branca aureolada de conhecimento, seu rosto marcado pelas
rugas da experiência, nem seu olhar amadurecido pelas lições da vida. Sofro porque não poderei
mais ouvir suas histórias sábias nem contemplar seu sorriso de ternura. Não verei suas mãos
enrugadas tomando as minhas com profundo afeto.
Nesse momento, o sábio dirigiu-se ao jovem e disse com serenidade:
– Você percebe agora as nuanças, os tons do amor sem ilusões, meu jovem? O amor verdadeiro é
eterno porque não se apega ao corpo físico, mas se afeiçoa ao ser imortal que o habita
temporariamente. É nesses sentimentos sem ilusões nem fantasias que reside o verdadeiro e eterno
amor” (“Sabedoria dos Povos”, Ed. Mundo e Missão, páginas 115-116).
“A experiência estética do amor”: ter olhos que enxergam com o coração, que são capazes de
encontrar e contemplar a beleza interior, porque, a quem ama de verdade, “o feio bonito lhe
parece”! Você pode ser uma moça belíssima agora, um rapaz muito bem apessoado e conservar-se
assim por um bom tempo, mas o tempo cobra o seu preço e, mais dia, menos dia, você poderá
adoecer, ou ser vítima de um acidente ou, de forma muito natural, ficar velha, velho. Que bênção
poder “envelhecer e gastar-se juntos”, escreve o Papa Francisco na “Amoris laetitia”; “que
cheguemos juntos a uma ditosa velhice”, pede Sara ao Senhor (cf. Tb 8,10) e a Igreja repete como
bênção ao se realizarem os matrimônios.
“A cada dia basta o seu cuidado” (Mt 6,34), repete Jesus. Para que se preocupar tanto com o futuro,
quando apenas o presente nos é dado com certeza e como presente? Use bem as palavras, pense
coisas boas, incentive o outro, elogie a beleza do pôr do sol e também a beleza do corpo que
envelhece, ponha trigo no seu moinho a cada manhã.
Por que se preocupar tanto se, como ensina Santa Teresa d’Ávila, “Deus basta”, se Ele é o Emanuel,
o Deus-Conosco, que caminha ao nosso lado, e até a erva do campo ele faz florescer para alegrar
nossos corações? Ele nos incentiva cada dia, cada dia de novo ele diz “Levanta-te!”, cada dia de novo
Ele nos ergue para os embates que se renovam.
Conta Nido Qubein em “Histórias para Aquecer o Coração – Edição de Ouro”, da Sextante:
“Algumas das histórias de grandes sucessos no mundo foram consequência de uma palavra de
incentivo ou um ato de confiança de alguém próximo ou de um amigo verdadeiro. Se não fosse por
uma esposa corajosa, Sophia, talvez não tivéssemos entre os grandes nomes da literatura o de
Nathaniel Hawthorne, que viveu de 1804 a 1864, um dos maiores romancistas e contistas
americanos do século XIX.
Quando Nathaniel, mortificado, chegou em casa e disse à mulher que era um fracassado, que fora
despedido do emprego na alfândega, ela o surpreendeu com uma exclamação de alegria.
– Agora você vai poder escrever seu livro! – ela disse, feliz.
– E como vamos viver enquanto eu estiver escrevendo? – ele replicou, inseguro. Para sua surpresa,
Sophia abriu uma gaveta, de onde tirou uma substancial soma de dinheiro.
– Como foi que você conseguiu esse dinheiro? – Nathaniel perguntou, espantado.
– Sempre soube que você era uma pessoa de talento – Sophia respondeu. Assim, toda semana, eu
guardava um pouco do dinheiro que você me dava para as despesas. Agora, aqui há o suficiente
para nos manter por, pelo menos, um ano inteiro.
Da confiança e da fé dessa mulher surgiu um dos maiores romances da literatura americana: ‘A letra
escarlate’” (páginas 86-87).
Uma palavra, uma atitude, podem mudar não só uma vida, mas muitas vidas. Não se espantar com
as coisas do mundo: tudo ao seu tempo. Afinal, como diz minha querida irmã Marili, a caçula da
família, “quanto mais avança a noite, quanto mais a madrugada se faz companheira, tanto mais o
dia se aproxima”…
“Para tudo há um tempo”, ensina o Eclesiastes (3,1): tempo para se preocupar e tempo para
espairecer, tempo para trabalhar e tempo para descansar, tempo para dormir e tempo para acordar,
tempo para sorrir e tempo para sofrer, tempo para plantar e tempo para colher. Não adianta não
querer sofrer: o Senhor é que sabe o que é melhor para nós; não adianta não querer dormir: o corpo
não resistirá por muito tempo e adormecerá…
Li, já faz tempo:
– Mestre, como faço para não me aborrecer? Algumas pessoas falam demais, outras são ignorantes.
Algumas são indiferentes. Sinto ódio das que são mentirosas e ainda sofro com as que caluniam.
– Pois viva como as flores – advertiu o mestre.
– Como é viver como as flores? – perguntou o discípulo.
– Repare naquelas flores – continuou o mestre, apontando lírios que cresciam no jardim. Elas nascem
no esterco, entretanto são puras e perfumadas. Extraem do adubo malcheiroso tudo o que lhes é
útil e saudável, mas não permitem que o azedume da terra manche o frescor de suas pétalas. É justo
angustiar-se com as próprias culpas, mas não é sábio permitir que os vícios dos outros o
importunem. Os defeitos deles são deles e não seus. Se não são seus, não há razão para
aborrecimento. Exercite, pois, a virtude de rejeitar todo mal que vem de fora. Isso é viver como as
flores!”
Que bom se decidíssemos viver como as flores!