Da ala do meu claustro gosto de contemplar a vida eterna. Aprendi a fazê-lo já há alguns anos com o evangelista João, quando me encontrei com a resposta que Jesus deu a quem Lhe perguntava: «que fazer para trabalhar nas obras de Deus?». Ele respondeu: «A obra de Deus consiste em acreditar naquele que Ele enviou». Percebi que a fé era o único que Deus me pedia e a chave de entrada para a vida eterna, que Ele me oferecia. «É Esta a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e acredita n’Ele tenha a vida eterna» (João 6:40).
A vida eterna reclama de nós o conhecimento de Deus. Um conhecimento que procede do amor, e que chega ao coração e ao intelecto como luz que nos faz ver para além das aparências das coisas. Um conhecimento que nos faz ver a essência da vida e das coisas como manifestação do próprio Deus.
A vida eterna é a vontade de Deus para cada um de nós. Dele vimos e para Ele vamos, e a nossa vida decorre entre o “já e o ainda não”; entre o que de Deus já conhecemos e o que para nós ainda é desconhecido, entre o que em nós já se abriu ao Seu Amor e o que ainda não deixamos que Ele amasse. A vida eterna não é mais do que nos deixarmos amar por Deus, nos deixarmos envolver e transformar pelo Seu Amor.
Vamos, então, olhar para o livro da nossa vida e ver como a Sabedoria se manifestou em vida eterna.
No tempo de verão, entre as várias atividades organizadas, havia um mês de exercícios espirituais em total silêncio e solidão. O centro de espiritualidade distava cerca de duzentos quilômetros. No dia da partida comecei a sentir que não ia ser capaz de conviver tanto tempo em silêncio e solidão, com a minha morte, pois ainda me encontrava neste estado interior.
Quando deixamos a cidade e entramos na autoestrada, recolhi-me dentro de mim e invoquei a presença do Espírito Santo. Nesse momento pedi-lhe uma palavra que me ajudasse a viver aquele retiro de trinta dias. Tirei da mochila a Sagrada Escritura e abri-a. Diante de mim estava o capítulo 9 de São João – o cego de nascimento. Aparentemente parecia não ter nada haver comigo, ou talvez até tivesse, porque a morte pode ser uma cegueira produzida por Deus, mas não o entendia. Comecei a ler e parei onde diz: «Mestre, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele nem seus pais. É assim para que se manifestem as obras de Deus». Aqui estava o sinal do Espírito Santo: «Era para que se manifestassem as obras de Deus». Não sabia quais eram as obras de Deus, mas sabia que Deus ia manifestar em mim a Suas obras. Segui a viagem mais serena, com a certeza de que Deus estaria comigo nesse retiro.
À medida que os dias iam passando, o peso da Cruz ia aumentando. Num dos momentos de oração, diante do Crucificado, pus-me a olhar para Ele e para mim, para as diferenças que entre nós existiam. Jesus depois da morte teve José de Arimatéia a descê-l’O da cruz; teve Maria, Sua Mãe, que sempre esteve junto Dele e O acolheu no seu regaço. Teve o Pai que O ressuscitou ao terceiro dia e não deixou que a morte tivesse a última palavra sobre Ele. Sim, Jesus tinha o Pai, que n’Ele fez triunfar a Vida Divina. Eu, porém, estava na cruz sozinha; não tinha ninguém que me fizesse descer da Cruz, não tinha amigos como José de Arimatéia. Estava morta e sozinha, na cruz. Jesus tivera o Pai, eu não tinha um Pai que me fizesse voltar à vida, que me libertasse do poder da morte. Eu não tinha quem me tirasse da cruz e não sabia como dela descer. Tinha que permanecer na cruz!
Estava eu nesta contemplação do Crucificado, quando em diálogo, alguém me disse: «O nosso Deus é um Deus Vivo». Nesse mesmo instante fez-se luz dentro de mim e as palavras da minha boca encheram-se da intensidade da Presença do Deus Vivo na minha própria vida. O Espírito Santo fez-me entender que Eu pertencia a Deus, e tinha sido o próprio Deus, por Sua vontade, que me tinha colocado na Cruz. Era necessário esperar, que a seu tempo Deus ir-me-ia tirar da Cruz. Deus, o Deus Vivo, tinha decidido entrar na minha vida!
Deus tinha entrado na minha vida, tinha assumido o meu ser, tinha-me unido a Jesus na Cruz, e agora, era só permanecer aberta a Deus e deixá-l’O viver em mim segundo a Sua vontade. Tudo o vivido, até ao momento presente, era caminho de comunhão com o Deus Vivo.
Era a experiência do encontro de Moisés com o Deus Vivo. Diz Moisés a Deus: «Se alguém perguntar quem és Tu, que devo responder? “Eu Sou”. Eu Sou Aquele que sou.». Este “Eu Sou” é toda a força de vida divina. É o Deus Vivo em comunicação de Vida e Amor, como rio impetuoso que jorra abundantemente. E este era o Deus que me dava a Sua própria Vida e me fazia estar na fonte da Vida.
Depois de cair na conta que o nosso Deus é um Deus Vivo, que vive em nós e quer estabelecer uma relação de vida e amor conosco; um Deus com quem podemos falar e de quem podemos esperar uma resposta, comecei a fazer da oração um espaço de diálogo. Havia muitas coisas que não entendia e perguntava. Porém, num primeiro momento, parecia que Deus não respondia às minhas perguntas e me deixava sem respostas, entregue a mim mesma. Mas, na realidade, Ele estava a falar-me doutra maneira.
Num dia de manhã, quando saía da oração, olhei para o céu, como se quisesse olhar para Deus e, interiormente, entendi que tal como Deus faz nascer o dia e o sustenta com o sol, iluminando-o e aquecendo-o, assim Ele diariamente sustenta a minha vida com o seu amor, ilumina-a com a sua luz e conduze-a porque Ele é meu Pai. A minha vida concreta começara a ser um lugar da manifestação de Deus. Na oração, fazia perguntas, pedia a Deus que me explicasse o sentido das Palavras da Escritura, e Ele fazia-o no concreto da vida, em cada circunstância e em cada detalhe que me chamava a viver. Esta experiência levou-me a ter um olhar de fé sobre a vida e a ler os sinais da presença de Deus, porque a própria vida se tinha tornado resposta de Deus às dúvidas, confirmação da palavra divina que Ele me dava para rezar na oração e da minha própria união com Ele. A vida, toda a vida, tinha-se tornado terra sagrada, porque era espaço de manifestação de Deus. O nosso Deus reza-Se e diz-Se, a Si mesmo, nas nossas vidas. As nossas vidas, quando vistas à luz da fé são uma oração de Deus cheia de graça e misericórdia. O diálogo concreto com Deus dá-se na vida.
Já sabia que tinha um Pai, o Pai de Jesus era o meu Pai, e que vivia a vida de Jesus; então a minha vida assumia os traços da vida eterna. Ela era um lugar de conhecimento do Pai e do Filho, enquanto comunhão com Eles. Tudo em mim foi passando a estar em função da manifestação da Sua vontade e da Sua vida. A vida já não se reduzia ao que eu vivia, mas ao que Eles viviam em mim e à minha participação no Seu mistério. Nesta altura entendi que eu já não era um eu, mas um nós. Tal como Deus no seu mistério trinitário, no qual cada um é um eu sustentado por um Nós – um Nós que é Amor.
As palavras da primeira Epístola de São João tocavam tão fundo dentro de mim que se tornavam uma fonte de compreensão da minha própria vida. Transcrevo-as porque considero que são um desafio a todos nós: «1O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, 2de fato, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamos-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós – 3o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão conosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. 4Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa» (1João 1:1-4).
O Papa Francisco desafia-nos a pôr os olhos na vida eterna e a viver com a luz que nos chega da comunhão com o Pai e o Filho; desafia-nos a saborear, já nesta terra, algo da vida eterna, através da oração, dos sacramentos, da vida fraterna. Que lhe vamos responder? Será que nos dispomos ao encontro com o amor do Senhor?
«Jesus afirma que Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele. Esta é uma ligação decisiva, a aliança fundamental, aliança com Jesus. Ele é a Aliança. Ele é a vida e a ressurreição, porque com o seu amor crucificado venceu a morte. Em Jesus, Deus doa-nos a vida eterna, a todos, e todos graças a Ele possuem a esperança de uma vida ainda mais verdadeira do que esta. A vida que Deus nos prepara não é um simples embelezamento desta atual: ela supera a nossa imaginação, porque Deus surpreende-nos continuamente com o seu amor e sua misericórdia. E completa: Esta vida não é referência para a eternidade, para a outra vida que nos espera, mas é a eternidade que ilumina e dá esperança à vida terrena de cada um de nós! Se olharmos apenas com os olhos humanos, tendemos a dizer que o caminho do homem vai da vida para a morte.
Jesus inverte essa visão e afirma que a nossa peregrinação vai da morte para a vida: a vida plena! Nós estamos em caminho, em peregrinação para a vida plena. E essa vida plena ilumina o nosso caminho! A morte está atrás, não diante de nós. Diante de nós está o Deus dos vivos, está a derrota definitiva do pecado e da morte, o início de um novo tempo de alegria e de luz infinita. Mas mesmo nesta terra, na oração, nos sacramentos e na fraternidade, encontramos Jesus e seu amor, e assim podemos saborear algo da vida eterna. A experiência que fazemos do seu amor e da sua fidelidade acendem-se como um fogo em nosso coração e aumenta a nossa fé na ressurreição. Se Deus é fiel e ama não pode ser a tempo limitado. Ele é sempre fiel, segundo o seu tempo, que é a eternidade», disse o Santo Padre.
O Papa Francisco citou ainda o Padre grego Gregório de Nissa que oferece uma visão de eternidade «concebida como uma condição existencial que não é estática, mas dinâmica e vivaz. O desejo humano de vida e felicidade, intimamente ligado àquele de ver e conhecer Deus, que cresce continuamente” sem nunca encontrar o fim. A experiência de se encontrar com Deus, acrescentou o Santo Padre, “transcende qualquer conquista humana e constitui uma meta infinita e sempre nova». E para São Tomás de Aquino é «na vida eterna acontece a união do homem com Deus, numa ‘perfeita visão’ d’Ele».
Esta descoberta da vida eterna continuou o Papa, deveria encorajar-nos a repropor “apaixonadamente” com profundidade e linguagem adequada, «o coração da nossa fé, a esperança que nos anima e que dá força ao testemunho cristão no mundo: a beleza da Eternidade”». Que a descoberta da beleza da eternidade seja o grande desafio da Sabedoria da Cruz às nossas vidas. Rezemos juntos:
Senhor,
a nossa vida é uma peregrinação
marcada pela beleza da vida eterna.
Mas muitas vezes esquecemo-nos
que a nossa peregrinação só encontra
o verdadeiro sentido na oração,
quando abrimos o coração Àquele
para quem caminhamos,
Aquele que é o verdadeiro “destino” da nossa vida.
Faz-nos cair na conta, Senhor,
de que caminhamos para Ti
e de antecipar o encontro contigo
por meio da oração.
Então a nossa vida encher-se-á de alegria
e cada acontecimento vivido com entusiasmo e esperança
será manifestação da Tua presença entre nós.
Será anúncio de vida iluminada pela eternidade
partilha do que ouvimos,
e do que vimos com os nossos olhos,
do que contemplamos e as nossas mãos tocaram
relativamente ao Verbo da Vida,
porque o Verbo manifestou-se e
fez-se Vida da nossa vida.
Faz-nos peregrinos
cheios da alegria e da esperança,
que brotam no coração daquele que ora
e se deixa iluminar pela Sabedoria da vida eterna,
para viver em comunhão com o Pai e o Seu Filho Jesus Cristo.
Amém.
Fonte deste artigo: https://claustro.carmelitas.pt/