Programa Palavra Viva – Prof. Carlos Martendal
“A Carta a Diogneto” é da antiguidade cristã e ainda se discute quem é o autor e qual a data em que
foi escrita. Nesse documento lê-se que os cristãos “casam-se como todos os homens e como todos
procriam, mas não rejeitam os filhos. A mesa é comum; não o leito” (V, 6-7).
Mais adiante: “Quem carrega o fardo do próximo (Gl 6,2), quem procura fazer bem ao outro naquilo
mesmo em que é melhor, quem transfere os dons de Deus aos necessitados, torna-se um deus para
os que o recebem, é imitador de Deus” (X, 6).
O autor da carta – assim me parece – quer dizer que os cristãos são iguais a todos os homens, mas,
ao mesmo tempo, são diferentes: “casam-se como todos e como todos procriam”. Agora vem uma
conjunção adversativa importante: “mas não rejeitam os filhos”, isto é, não praticam o aborto,
sempre acolhem os filhos, constituindo, assim, sua família.
“A mesa é comum”, como lemos nos Atos dos Apóstolos (2,46); o leito, contudo, não o é:
“Considerai o matrimônio com respeito e conservai o leito conjugal imaculado, porque Deus julgará
os impuros e os adúlteros”, escreverá São Paulo na carta aos Hebreus (13,4).
Depois: onde, mais que no casamento, se pode ajudar a “carregar o fardo do próximo”? Onde, mais
que no casamento, se pode tornar “imitador de Deus” pelo bem que faz ao outro, pela forma como
ama esse outro que desde toda a eternidade Deus lhe destinou?
Em junho de 2018, ao conceder audiência ao Fórum das Associações Familiares, o Papa Francisco
contou-lhes que gosta de cumprimentar os casais que comemoram bodas de ouro ou de prata que
vão às audiências ou às Missas em Santa Marta.
“Certa vez – disse ele – havia um casal que comemorava sessenta anos de casamento. Mas eram
jovens, porque se tinham casado com dezoito anos, como nos velhos tempos. Naqueles tempos
casava-se jovem. Hoje, até que se case um filho… pobres mães!
Eu disse a esse casal: ‘Sessenta anos! Mas sentis ainda o mesmo amor?’ E eles, que olhavam para
mim, fitaram-se, depois de novo olharam para mim, e notei que tinham os olhos molhados. Os dois
disseram-me: ‘Estamos apaixonados’.
O calor da família que cresce, o amor que não é um amor de romance. É um amor verdadeiro.
Permanecer apaixonados por toda a vida, com tantos problemas que surgem…
Outra pergunta que faço aos cônjuges que festejam cinquenta ou sessenta anos de união: ‘Qual de
vós teve mais paciência?’ É matemático, a resposta é: ‘Os dois’. Bonito isso! É uma vida partilhada,
uma vida a dois. A paciência de se suportar reciprocamente.
(…) A paciência é uma virtude que ajuda muito na vida conjugal: saber esperar. Esperar. Na vida há
situações de crise – crises fortes, difíceis – e às vezes chegam também tempos de infidelidade.
Quando não se pode resolver o problema naquele momento, é preciso a paciência do amor que
espera. Muitas mulheres – porque é mais típico da mulher que do homem, mas às vezes até o
homem o faz – muitas mulheres no silêncio esperaram, olhando para o outro lado, esperando que
o marido voltasse à fidelidade. Isto é santidade. A santidade que perdoa tudo, porque ama.
Paciência. Muita paciência, de um para com o outro.
Se um deles estiver nervoso e gritar, não responder com outro grito… Ficar em silêncio, deixar
passar a tempestade e depois, no momento oportuno, falar sobre o assunto” (L’Osservatore
Romano de 21 de junho de 2018, página 2).
Depois, Francisco aborda a preparação para o matrimônio. Tantos se contentam com três ou quatro
encontros de preparação…
E então trata dos filhos, da educação dos filhos. E diz que “a vida de família é um sacrifício, mas um
bom sacrifício”. Que “a família é uma aventura, uma linda aventura!” E frisa: “O maior dom que
Deus ofereceu à humanidade foi a família”.
Hoje – dói dizê-lo, acrescenta o Papa – fala-se de famílias ‘diversificadas’: diferentes tipos de família.
Sim, é verdade que o termo ‘família’ é uma palavra analógica, porque se fala da ‘família’ das estrelas,
das ‘famílias’ das árvores, das ‘famílias’ dos animais… é uma palavra analógica.
Mas a família humana como imagem de Deus, homem e mulher, é uma só. Única. Pode ser que um
homem e uma mulher não sejam crentes: mas se amarem e se unirem em matrimônio, são imagem
e semelhança de Deus, mesmo que não acreditem. É um mistério: São Paulo chama-o ‘grande
mistério’ (cf. Ef 5,32)” (idem, ibidem).
Homem, mulher, amor: uma trindade santa, porque é Deus que une. Não a Santíssima Trindade, é
claro, mas também uma trindade santa. Onde reinam os frutos do Espírito Santo, entre os quais a
alegria.
Lembro-me, a propósito, de um casal idoso, mas de coração jovem. Ela tem uma garrafinha plástica
cheia de água e diz para o marido que vai fazer uma mágica, fazendo aparecer uma moeda dentro,
no fundo da garrafa. O marido não acredita. Ela diz umas palavras diferentes, misteriosas, retira o
pano que cobria a garrafa, dá uma espiadinha lá dentro e, sorrindo, pede ao marido que olhe
também. Ele se aproxima, encosta o olho e ela, zupt! aperta a garrafa, que jorra água no rosto do
‘coitado’. Ela começa a rir, a gargalhar; ele, o que faz? Gargalha também. Ah, o amor, como é belo!
Fosse você o marido, o que teria acontecido? Linda, quase divina a cumplicidade que une no amor
um homem e uma mulher!
A historinha que segue, encontrei-a na Carta Mensal de agosto de 1988, das Equipes de Nossa
Senhora. Diz assim:
“Faz vinte e cinco anos que João e Joana procuram mutuamente ‘fazer o outro feliz’. E, no entanto,
faz vinte e cinco anos que todo dia de manhã, na hora do café, João, com tristeza, vê Joana apoderar-
se da pontinha do pão, sem nunca deixá-lo para ele.
Mas hoje, ela está com muita dor de garganta. Com dificuldade para engolir, ela só consegue engolir
aos poucos um pouco de miolo de pão molhado no café. João, mais que depressa, passa a mão na
cobiçada pontinha e a saboreia, com a felicidade estampada no rosto. Joana se surpreende:
– Não me diga que você gosta da pontinha…
Confuso, ele abaixa a cabeça:
– Adoro!
– Não acredito, eu tenho horror! – responde Joana.
– Mas então, por quê?… – pergunta João.
– Eu tinha certeza de que você também tinha horror, então corria para pegar a pontinha antes de
você – responde Joana. – E eu te deixava a pontinha, porque achava que você também só gosta dessa
parte do pão! – completou João.
Moral da história: Antes de fazer um sacrifício por alguém, vamos tentar saber se isso realmente o
deixa feliz!” É preciso, e muito, haver comunicação entre os cônjuges.
João e Mayara Coelho casaram-se em novembro de 2016; um ano antes, ele fez este poema para
ela:
“Às vezes eu dou risadas dela. Ela faz que não gosta. Eu rio mesmo assim.
Não tenho apenas um motivo… eu só acho graça. Às vezes, o tempo todo.
Pode ser o jeito como ela apoia o rosto sobre as mãos para dormir, deixando a ‘boca mole’.
Pode ser o balé estranho que ela dança em frente ao espelho escolhendo suas roupas.
Ou talvez o jeito de cantar ópera para falar ‘Nããããoooo’!
Às vezes é pela letra errada da música que ela jura estar correta.
Ou pela tentativa de pronunciar a palavra ‘world’.
Eu rio da facilidade com que ela chora de emoção, como se a lágrima estivesse se segurando para
cair a qualquer momento…
Dou risadas da risada dela, pois acho engraçada e me assusta às vezes.
Nesse riso, me encontro com ela.
Me sinto mais dela do que meu.
E assim corre a minha felicidade, aos risos e beijos, abraços e cócegas,
mais Mayara e menos João.
Menos eu, mais ela!”
Não é belo o amor? Enquanto o João for menos João e mais Mayara e a Mayara for menos Mayara
e mais João, o casamento deles terá tudo para chegar às bodas de ouro, de diamante, se Deus lhes
conceder esse tempo de vida, que sinceramente lhes desejamos.
E eles poderão cantar juntos o ‘Cântico das Núpcias’, de Dom Marcos Barbosa, monge beneditino,
membro da Academia Brasileira de Letras:
“Nossos caminhos são agora um só caminho, / Nossas almas, uma só alma. / Cantarão para nós os
mesmos pássaros, / e os mesmos anjos desdobrarão sobre nós as invisíveis asas. / Temos, agora,
por espelho os nossos olhos, / e teu riso dirá à minha alegria, / o teu pranto à minha tristeza. / Se
eu fechar os olhos, tu estarás presente; / Se eu adormecer, serás meu sonho, / e serás, ao despertar,
o sol que desponta. Nossos mapas serão iguais, / e traçaremos juntos os mesmos roteiros / que
conduzam às fontes escondidas / e aos tesouros ocultos.
Na mesma página do Evangelho encontraremos o Cristo, / partiremos na ceia o mesmo pão; / meus
amigos serão os teus amigos, / e perdoaremos com iguais palavras / àqueles que nos invejarem.
Será nossa leitura à luz da mesma lâmpada, / aqueceremos as mãos ao mesmo fogo / e veremos em
silêncio desabrochar no jardim / a primeira rosa da primavera. / Iremos depois nos descobrir nos
filhos que crescem, / e não mais saberemos distinguir em cada um / os meus traços e os teus, / o
meu e o teu gesto, / então nos tornaremos parecidos. / E nem o mundo, nem a guerra, nem a morte,
/ nada mais poderá separar-nos, / pois seremos mais que nunca, / em cada filho, / uma só carne / e
um só coração.
Que o homem não separe o que Deus uniu. / Que o tempo não destrua a aliança que nos prende, /
nem os amores, o amor.
Que eu não tenha outro repouso que teu peito, / outro amparo que a tua mão, / outro alimento
que o teu sorriso. / E, quando eu fechar os olhos para a grande noite, / sejam as tuas mãos que hão
de fechá-los. / E, quando os abrir para a visão de Deus, / possa contemplar-te como o caminho, /
que me levou dias após dias, / à fonte de todo o amor.
Nossos caminhos são agora um só caminho, / nossas almas uma só alma. / Já não preciso estender
a mão para alcançar-te / Já não preciso falar para que me escutes…”
Depois desses dois belos poemas, o do João para sua Mayara, e o de Dom Marcos Barbosa para
todos os esposos, vêm espontaneamente ao coração as palavras que Paulo escreveu aos Efésios e
agora repete para os homens de hoje e de todos os tempos: “Maridos, amai vossas mulheres” (Ef
5,25). E, nessa carta, em pouquíssimos versículos (do 22 ao 33) ele voltará a esse verbo por sete
vezes, como a querer dizer que a perfeição está, de fato, no amar, sabendo que o amor “tudo
desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (cf. 1Cor 13,7).
Que grandeza comporta o sacramento do Matrimônio! “Ele gera entre os cônjuges um vínculo
perpétuo e exclusivo. O próprio Deus sela o consenso dos esposos. Portanto, o Matrimônio
concluído e consumado entre batizados jamais pode ser dissolvido. Além disso – ensina o
Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, no número 346 -, esse sacramento confere aos esposos
a graça necessária para atingir a santidade na vida conjugal e para o acolhimento responsável dos
filhos e a educação deles”.
Recordamos, há pouco, casais com 50, 60 anos de matrimônio, com quem o Papa Francisco
conversou. Faz mais de cinquenta anos – foi em 1964 – que uma peça musical começou a ser
apresentada na América e na Europa – Um violinista no telhado, de Joseph Stein. A ela se reporta o
pastor Walter Trobisch, num livro muito bom de Edições Loyola: ‘Casei-me com Você’.
“Narra a estória de um casal judeu, Tevye, o leiteiro, e sua esposa, Golde. Após vinte e cinco anos
de casados, eles se perguntam se se amam. Ouve-se o seguinte diálogo entre eles:
Tevye – Golde, estou lhe fazendo uma pergunta: Você me ama?
Golde – Você é um tolo.
Tevye – Sei disso. Mas você me ama?
Golde – Eu amo você? Durante vinte e cinco anos tenho lavado suas roupas,
preparado suas refeições, limpado sua casa. Dei-lhe filhos, ordenhei a vaca. Após vinte e
cinco anos, por que falar em amor justamente agora?
Tevye – Golde, a primeira vez que a encontrei foi no dia do nosso casamento. Estava com medo.
Golde – Eu estava encabulada.
Tevye – Eu estava nervoso.
Golde – Eu também.
Tevye – Mas meu pai e minha mãe disseram que aprenderíamos a nos amar reciprocamente. E agora
estou perguntando, Golde: Você me ama?
Golde – Sou sua esposa.
Tevye – Mas você me ama?
Golde – Se eu o amo? Durante vinte e cinco anos tenho vivido com você, lutado com você, passado
fome com você. Por vinte e cinco anos minha cama foi sua. Se isso não é amor, o que é?
Tevye – Então você me ama?
Golde – Creio que sim.
Tevye – Também acredito que a amo.
Tevye e Golde – Não altera coisa alguma, mas mesmo assim, após vinte e cinco anos é agradável
saber!” (Casei-me com Você, pp. 58-59).
Diálogo interessante, sem dúvida, mas custou sair um ‘sim, eu te amo!’… E não foi com todas as
letras que isso foi pronunciado. Se vocês dois, marido e mulher, não se dispuserem a externar seus
sentimentos, suas necessidades, seus elogios, suas correções, isso poderá custar caro: no mínimo
perderão a oportunidade de se admirarem, de viverem uma vida mais saudável, mais alegre, em
que um se torna cúmplice do outro. Perderão, também, oportunidades mais frequentes de se
ajudarem na santificação mútua, os filhos crescerão sentindo menos amor entre vocês e de vocês
para eles, e as tintas com que pintarão o amor ficarão desbotadas.
Sabe que, às vezes, é preciso coragem para dizer um “eu te amo!”? Você, marido, você, esposa,
vocês dois: sejam cada dia de novo corajosos, casem-se cada dia de novo, amem-se com o amor que
vem do próprio Deus, que os uniu. Nunca se arrependerão; pelo contrário, tudo isso será sempre
motivo de alegria, mesmo em meio às tristezas que a vida possa reservar. “Amem-se hoje mais do
que ontem e menos do que amanhã”, aconselhava Pe. Caffarel, um padre que amava os casais e
que, do céu, continua intercedendo por eles.
Escutemos nossa canção, a mesma que a Cida e eu escolhemos para nossa Missa em ação de graças
por ocasião de nossas Bodas de Prata: “E eu te digo que te amo”, do Pe. Zezinho.
CD “Sem ódio e sem medo”
faixa 1 – 4min25s