Palavra de Deus e do Homem
Armindo Vaz, OCD
Ao lermos a Bíblia, vamos interiorizando que o seu discurso narrativo tem dois pólos constantes: Deus e o Homem em
mútua relação. São os dois maiores protagonistas desenhados por ela, segundo épocas, preocupações e influências culturais diversas: um à procura do outro, um a precisar de sentido para a vida, o Outro a oferecê-lo.
Nesta arquitetura bipolar, os livros do Antigo Testamento preparam o homem para o encontro com o Deus que se manifestou totalmente no Homem por excelência, Jesus de Nazaré. Nem os testemunhos bíblicos conhecem um Deus que prescinda do homem ou um homem íntegro que prescinda de Deus:
“Senhor, Tu examinaste-me e conheces-me…
Tu envolves-me por trás e por diante” (Sl 139,1.5).
“Ó Deus, Tu és o meu Deus! Anseio por ti!
O meu ser tem sede de ti;
Todo o meu corpo anela por ti” (Sl 63,2).
O Deus de Israel e Deus de Jesus prova ser Deus na sua fidelidade ao Homem, por palavras e obras. Aparece envolvido na história humana e comprometido com o seu destino. Para os profetas bíblicos, a paixão de Deus pelo homem na história é ideia central. Nunca mais o homem teve importância e dignidade comparável à do pensamento bíblico, expresso logo nas narrativas de criação.
É visto não só como imagem de Deus mas também como eterno desvelo de Deus. Aliás, esta imagem do Deus que se comove e tem compaixão do homem é de alto-relevo: significa que o homem é importante para Deus e que os acontecimentos do mundo Lhe dizem respeito e provocam a Sua reação e revelação. Na cultura bíblica, negar a importância do homem para Deus é praticamente blasfemo: é tão inconcebível como negar a importância de Deus para o homem.
Enquanto testemunho da revelação de Deus ao ser humano, a Bíblia, na sua fé e humanidade, quer validar o bonito e o espinhoso da vida. O filósofo judeu F. Rosenzweig afirmou: “O que está na Bíblia pode-se conhecer de duas maneiras: escutando o que ela diz e pondo-se à escuta do bater do coração humano. A Bíblia e o coração dizem o mesmo. Por isso (e só por isso) a Bíblia é ‘revelação’” (Carta a Benno Jacob, de 27.5.1921).
As novas gerações não se acostumam a lê-la, por pensarem que não fala da vida humana mas de Deus. Não querendo
ser incomodados com a procura d’Ele – por O verem como desinteressante e desnecessário para viverem bem,
como elemento perturbador da festa da felicidade ou como ambiguamente associado ao fundamentalismo, ao fanatismo religioso, à intolerância e à violência – não se interessam por ela. Ora, importa saber ler nela o humano, tanto como o espiritual. O leitor que descobre o humano da Bíblia sentir-se-á mais do que informado culturalmente e iluminado espiritualmente: descobrir-se-á chamado por dentro a fazer aliança de vida com o Deus que na Bíblia se revela Deus de rosto humano para nos tornar homens de
rosto divino.
O homem bíblico aparece enamorado da vida: sabe que ela é a única que não nos deixa antes de nós a deixarmos a ela. E, por sentir que é preciosa, põe perguntas sobre ela: perscruta os segredos da natureza à procura de ajuda (Sl 121,1-2), lança-se nos caminhos do mundo em busca de respostas sobre riqueza e pobreza, sobre escravidão e liberdade; interroga-se sobre infidelidade e fidelidade, sobre fraternidade, lealdade e sentido da vida, expresso em termos de salvação. Mas na carreira da vida a pergunta
de fundo incide sempre no próprio corredor: “Que é o Homem?”
Esta interrogação suscita à fé bíblica respostas complementares: a da sua grandeza e a da sua natural limitação.
Por um lado, a resposta a partir da sua dignidade deslumbrante:
“Senhor nosso, que é o Homem para te lembrares dele,
O filho do homem para dele te ocupares?
Fizeste dele quase um ser divino,
De honra e glória o coroaste;
Deste-lhe poder sobre a obra das tuas mãos” (Sl 8,5-7).
Esta contemplação do humano como divinamente “coroado de honra e glória” e a dominar todos os seres vivos
deságua no louvor: “Senhor nosso, como és admirável em toda a terra!” (Sl 8,1.10).
Por outro lado, a resposta a partir da sua precariedade cruciante:
“Senhor, que é o Homem para cuidares dele,
E o filho do homem para pensares nele?
O homem é semelhante ao sopro da brisa,
Os seus dias, como sombra que passa” (Sl 144,3-4)
Esta transitoriedade sugere ao orante a necessidade de ser socorrido para ter a vida: “Senhor…, salva-me” (Sl 144,7).
Ora, o flagelo da pandemia que agora se abateu sobre o mundo inteiro pôs frente a frente estas duas notas da condição humana. Por um lado, tornou-nos conscientes do valor imenso da vida, a que nos agarrámos mais, não preparados para a perder tão depressa. Por outro, obrigou-nos a fazer contas com a nossa fragilidade radical e a redescobrir os limites inultrapassáveis da ciência, da medicina, e das esplendorosas conquistas das novas tecnologias. Uma simples praga pôs de joelhos ricos e poderosos,
cientistas e economistas. Tornou-se uma pergunta sobre os limites a que ninguém consegue fugir e um motivo para prestar atenção ao que realmente importa: bondade, solidariedade, amor, porque formamos uma só humanidade.