Por: Mons. André Vital Félix da Silva, SCJ
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A Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo reafirma a centralidade do Mistério Pascal celebrado na Eucaristia, que cotidianamente alimenta a Igreja na sua peregrinação rumo ao banquete eterno. Para além de motivações apologéticas ou devocionais, a Liturgia de hoje nos convida a mergulhar no Mistério de um Deus, que por amor, se faz presente no meio do seu povo para alimentá-lo a fim de que não desfaleça no caminho.
Na primeira leitura (Dt 8,2-3.14-16) a narração da experiência do povo que, na sua estrada rumo à Terra Prometida, passa pela humilhação de não ter o que comer e beber, serve de ocasião para a manifestação da bondade e misericórdia de Deus, que mesmo permitindo que o povo passe por momentos de privação e sofrimento, manifesta-lhe a sua presença providente e não o abandona, pois é Ele mesmo quem vai à sua frente conduzindo-o e alimentando-o. Contudo, o alimento indispensável ao povo, para que não desfaleça no caminho, não é pão e água, mas a Palavra do Senhor, pois é ela que vai mostrando-lhe onde encontrar a verdadeira fonte de vida. O maná descido do céu e a água que brotou da rocha nada mais são do que o sinal visível da providência de Deus, contudo, não são o sustento definitivo.
Na segunda leitura (1Cor 10,16-17) Paulo nos recorda que a Eucaristia não é simplesmente um encontro circular e horizontal para favorecer uma partilha de coisas nossas, daquilo que vivemos, pensamos, sentimos e almejamos, caso contrário, sairíamos dela certamente mais frustrados ou alienados. Mas a Eucaristia é comunhão com o Corpo e o Sangue de Cristo e, por isso, mergulhamos na sua vida, morte e ressurreição a fim de crescermos na convicção de sua vitória, penhor da nossa vida plena. Rompendo a circularidade fechada e estéril, a Eucaristia nos lança numa verticalidade infinita, pois nos faz testemunhar o grande milagre: o céu toca a terra, o Eterno entra na história dos homens, assumindo sua carne e seu sangue para que esses mergulhem na eternidade de Deus e sejam saciados plenamente por Ele e Nele.
No evangelho (Jo 6,51-58) encontramos um pequeno trecho do longo discurso de Jesus sobre o Pão da Vida. Após o sinal da multiplicação dos pães e dos peixes (Jo 6,1-15), Jesus atravessa o Mar da Galileia, e lá em Cafarnaum encontra as multidões que vêm ao seu encontro mais desejosas de alimento material do que alimentar-se com a presença do Filho de Deus, Aquele que quer oferecer o pão que não perece, mas que dá vida eterna (Jo 6,24s). Ainda que haja em muito ambientes, sobretudo acadêmicos e adeptos de uma hermenêutica bíblico-teológica racionalista, a tentação de querer reduzir esse ensinamento de Jesus apenas ao seu aspecto simbólico, metafórico, negando-lhe o seu realismo como se apresenta, é importante acolher com humildade a verdade revelada que nessa linguagem está presente. Se estivéssemos apenas diante de uma linguagem, cujo objetivo principal fosse a compreensão de um auditório, certamente as reações não teriam sido como aquelas registradas no evangelho.
Quando Jesus afirmou ser a Água Viva (Jo 4), a Luz do mundo (Jo 8,12), o Bom Pastor e a Porta das ovelhas (Jo 10), o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14), a Videira Verdadeira (Jo 15), não encontramos nenhuma reação tão de oposição dos seus interlocutores como o foi ao proclamar: “Eu sou o Pão da Vida”; a começar pelos judeus: “Como é que ele pode dar a sua carne a comer?”. A reação contrária vai se agravando ao ponto de, no final do ensinamento de Jesus, até mesmo os seus discípulos reagirem escandalizados pois percebem o realismo das suas palavras e não apenas um recurso de linguagem: “Esta palavra é dura! Quem pode escutá-la?” (Jo 6,60). Se fosse simplesmente questão de linguagem, Jesus como Mestre saberia muito bem, de forma didática, reformular o seu ensinamento. Portanto, não era uma questão de linguagem, mas o escândalo se deu por causa da verdade anunciada por Jesus. O decisivo agora para continuar com Jesus era crerem nessa verdade, ainda que não fossem capazes de compreendê-la. Por isso, Jesus denuncia: “Alguns de vós porém não creem” (Jo 6,64). E se a palavra sobre o realismo da entrega de seu corpo e sangue como alimento e bebida para vida do mundo foi dura, diante das reações de rejeição, Jesus recrudesce ainda mais o seu ensinamento: “Não quereis também partir?”.
Quantos, diante da incapacidade de compreender como é possível um simples pão e um pouco de vinho derramado no cálice, ao serem eucaristizados por ordem expressa de Jesus, se tornarem verdadeiramente o seu Corpo e Sangue (e não apenas de forma simbólica), decidiram ir embora? Quantos, enganados pela sua pretensa capacidade de poder compreender e explicar os mistérios de Deus e não conseguindo colocar tão imenso Mistério na sua pequena e medíocre mente, rejeitam acreditar Nele, cuja exigência para ser alimento é apenas ser acolhido na fé por um coração pobre e humilde?
A Eucaristia é um mistério tão sublime e inefável, pois é amor, e que a nossa existência aqui na terra, por mais longa que seja, não tem tempo suficiente para compreendê-la, por isso só há um caminho para aproximar-nos dela: crendo!
Portanto, não nos cansemos, apesar de nossas perguntas e incompreensão, de confessar como Pedro: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que és o Santo de Deus” (Jo 6,68-69).