A celebração da Quarta-feira de Cinzas, marcando o início da Quaresma, nos convida a entrar num “tempo favorável” (2ª leitura) não apenas para a preparação dos catecúmenos para o sacramento do batismo, mas é também um momento de convocação de toda a Igreja para que viva os compromissos desse sacramento, o que exige contínua conversão. “A Igreja é uma comunidade batismal, não apenas porque se forma pelo batismo, mas também e sobretudo porque vive a dinâmica de contínua conversão, cujo princípio está no batismo” (Cristo, Festa da Igreja, pág. 277).
O gesto simbólico da imposição das cinzas, de forte significado bíblico, não é rito mágico para apagar pecados, mas é apelo de conversão, lembrando-nos não apenas de que somos pó e ao pó retornaremos, mas que a nossa vida se renova e se encaminha para sua plenitude à medida que acolhemos o convite de Jesus: “Convertei-vos e crede no evangelho”.
Tradicionalmente as cinzas colocadas nas nossas cabeças no dia de hoje são feitas dos ramos que levamos nas mãos no Domingo de Ramos do ano anterior (Diretório Litúrgico, notas Quarta-feira de Cinzas) quando aclamamos solenemente Jesus, nosso Rei. Portanto, essas cinzas sobre nossas cabeças não lembram apenas a nossa miséria, mas fazem referência ao Cristo, Rei, Messias sofredor, que para nos reconciliar com o Pai e nos purificar de todo pecado entregou a sua vida por nós na cruz, mas ressurgiu dos mortos. Assim como o velho Adão, formado do pó da terra, recebeu o sopro de vida e se tornou um ser vivente (cf. Gn 2,7), o novo Adão assumiu o pó que somos nós para com o sopro do seu Espírito nos dar a vida eterna.
No evangelho de hoje, Jesus nos propõe a vivência das três expressões típicas da piedade judaica, contudo corrige a tentação de fazer delas meras práticas exteriores para serem vistas pelos homens; recupera o seu significado mais profundo, cujas raízes estão no interior do ser humano chamado a participar do mistério de Cristo, o homem novo, profundamente marcado pela abertura ao próximo (esmola: grego eleemosúne: algo dado por misericórdia), pela fome de Deus (oração) e pela consciência de suas limitações (jejum). Apesar de não se poder estabelecer uma hierarquia para dizer qual é a prática mais importante, pois as três estão intimamente relacionadas, chama a atenção o fato de Jesus ter iniciado pela caridade (esmola), pois esta é a expressão mais concreta da fé manifestada na oração, e do autodomínio (jejum), que é o grande bem que alguém pode realizar a si mesmo.
Numa circularidade sem início nem fim, podemos dizer que só é capaz de dar esmola quem faz a experiência de suas próprias necessidades, carências, de sentir-se um necessitado, cuja consciência mais amadurecida nos vem de uma vida de oração, de intimidade com Deus, diante de quem nos colocamos como absolutamente necessitados, e de quem recebemos tudo. Por sua vez, a intimidade com Deus (oração) nos leva à lucidez de que somos criaturas, cuja liberdade se constrói à medida que aprendemos a renunciar até pequenos bens, para alcançar maiores. No jejum não se faz a experiência da privação de algo ruim, mas aprende-se que é possível renunciar até aquilo que é necessário (alimento) e representa um bem. Portanto, se é possível renunciar um bem, quanto mais não será necessário e possível renunciar o mal. Jejuando, privando-se do que é um bem para si, este bem não se perde, mas transforma-se em bem para o outro, esta é a verdadeira esmola, não é sobra do que não me serve, mas partilha solidária de um bem que eu tenho e o outro ainda não tem. Esmola-oração-jejum são um tripé para sustentar o processo contínuo de conversão: mudança de mentalidade e de atitudes em relação ao próximo, a Deus e a si mesmo.
Quando as mãos estão comprometidas, ocupadas com o outro (solidariedade), não há como tocar trombetas para atrair atenção para si. A verdadeira intimidade com Deus (oração) impede a tentação da ostentação teatral da religião e a exposição em vitrine de falsa piedade. O autêntico jejum nos faz vencer amarras e todo tipo de dependência, tornando-nos capazes de decidir com liberdade e, portanto, nos dá a verdadeira alegria que se irradia como um perfume que se expande irresistivelmente.
A vivência da quaresma é exercício espiritual cujo fruto é uma vida interior saudável, pois ajuda a retomar o equilíbrio das relações com o próximo, com Deus e consigo mesmo. O abandono dessas práticas tão salutares (esmola, oração, jejum) nos impôs ironicamente, para o nosso bem, a sua obrigatoriedade, pois preferindo abandonar o jejum motivado espiritualmente, somos obrigados à dieta ditada pela doença; relativizando a autêntica oração, recorremos aos psicofármacos para sedar as nossas angústias existenciais; deseducados para a concentração de bens e a avareza, vivemos paranoicamente com medo do semelhante, pois pode nos roubar os bens. Que a quaresma nos ajude a recuperar a originalidade da vida, com atitudes que deem equilíbrio às relações com o próximo, com Deus e consigo mesmo.