O percurso humano e de fé de uma jovem santa carmelita
Ana Cláudia Meneguci Silva Comunidade Santa Teresa de Jesus – Rio de Janeiro – RJ
Juanita Fernandez Solar, nossa Teresa de Jesus dos Andes, jovem chilena que brotou, desabrochou e exalou seu perfume, cumprindo o chamado de Deus para si, com apenas 19 anos. Em tão curto período, conseguiu mostrar uma riqueza interior capaz de deixar marcas profundas naqueles que com ela conviveram, marcas que não se restringiram ao local onde habitou, mas que se tornaram dom de Deus para todos: Teresa de Jesus dos Andes é santa!
Os apelos que Deus faz ao coração humano não caem em um terreno neutro. É preciso certa honestidade para reconhecer a existência de condições internas favoráveis à ação da Graça e outras que impõem resistências. São aspectos da nossa condição humana. A constatação dessa realidade interior foi a que levou São Paulo a reconhecer sua luta pessoal: “Não faço o bem que quero fazer, mas o mal que não quero” (Rm 7, 19). Luta essa que não é exclusiva do Apóstolo dos Gentios, mas estende-se a todos que se dispõem ao seguimento de Cristo, ao caminho do Amor. Com Teresa dos Andes não poderia ter sido diferente, pois na história de cada pessoa insere-se o mistério divino, e saber acolher essa realidade e viver a partir dela é caminho de conhecimento próprio e de abertura à vontade de Deus.
“Quando uma alma se dá a Deus inteiramente, Ele manifesta- -se a ela de tal maneira que a alma vai descobrindo nele horizontes infinitos e, portanto, amando-o e unindo-se mais a Ele” (C 138)
A vida de todo batizado pode ser entendida como um itinerário, cujo percurso deve levar à configuração à pessoa de Jesus Cristo, adquirindo d’Ele, de seu coração, os mesmos sentimentos. E como abrange todo o arco da vida, esse caminho não termina nunca, porque tem como finalidade alcançar em profundidade toda a pessoa, a fim de que atitudes, palavras, gestos, escolhas, tudo revele a alegria da pertença a Deus.
Ao longo de sua curta vida terrena, Teresa desenvolveu a capacidade de amar Deus, seus próximos e a si mesma, ou seja, de amar de maneira não egocêntrica. Sabemos, a partir de nossa visão de pessoa humana, de nossa antropologia cristã, que fomos criados para amar. Tão profunda é essa realidade em nós que a pessoa inteira, mente, coração e vontade trazem inscritas essa tendência e exigência para amar. Nosso pai, João da Cruz, nos recorda que seremos julgados pelo critério do amor. Assim, amar se apresenta como o único e mais importante dever da pessoa! Seremos conhecidos como discípulos de Cristo pelo amor que praticarmos (Jo 13). O critério de comunhão com Cristo para permanecer em participação no mistério da Trindade está em guardar suas palavras (acolhê-las) e permanecer nelas, ou seja, combater para não permanecer nas próprias palavras, mas naquelas de Cristo.
Contudo, embora seja algo sem o qual não se pode viver como uma pessoa inteira, sadia, é um exercício da vontade que exige um caminho longo e por vezes cansativo.
“Tenho confusão e vergonha por tantos pecados que cometi. Deus meu, perdão! E pensar que o germe de todos os pecados é a soberba, e essa é a minha paixão dominante. Compreendi que o que mais me aparta de Deus é o meu orgulho. Desde hoje, quero e me proponho ser humilde.” (D 29)
Tomemos a intuição de nossa irmã: olhando para Cristo, vê a si mesma; redescobre o seu desejo por Ele, suplica o necessário socorro/perdão e, então, decide então buscar aquilo que os une – a humildade.
Trata-se de uma conquista da maturidade afetiva, em que a pessoa ama e aceita a outra pessoa como tal. Ama pelo valor da pessoa em si e não por seu interesse egoísta e utilitário. Como não recordar das cartas de nossa santa para seu irmão “Lucho querido”, nas quais se esforçava para manter um diálogo com aquele que não conseguia acolher sua decisão vocacional. Uma pessoa nesse percurso é capaz de romper com o egocentrismo da infância, e ao modificar a dinâmica desse “amor” até então vivenciado, pode posicionar-se com maior liberdade afetiva, reduzindo a demanda de mover-se por necessidades particulares e imaturas. O que nos impede de amar os outros de um modo desinteressado é o nosso egoísmo.
Juanita vive a sua vocação como caminho para a comunhão com seu irmão (dom de comunhão concreto e imediato). Não há, em sua compreensão vocacional, uma ideia do “só meu”, exceto o que é seu pecado. Seu modo de viver o chamado de Deus abre para nós perguntas: “Como viver a vocação?”; “Como viver a vocação como chamado de comunhão perfeita e plena com Cristo, no acolhimento e prática da vontade do Pai, e não ser nem agir como ‘acontecimento de comunhão’ por seus irmãos?”. Seria contraditório e incompleto. O caminho vocacional exige reconciliação de toda a história de vida.
Contudo, tentar compreender esse coração vibrante da jovem Juanita e, mais ainda, explicar tantas e profundas transformações partindo apenas do dado humano reduziria a busca da santidade – dessa configuração aos sentimentos do Filho – apenas às etapas do desenvolvimento humano. Mas, como dito acima, nossa antropologia cristã abarca o elemento da fé.
“Só Deus basta!”, ensina-nos nossa mãe, Teresa de Jesus. Ele é o único necessário, e ter uma experiência autêntica com Ele, compreender Sua linguagem, como se relaciona, para perceber Sua presença amorosa nas mais diversas situações e contextos da vida, saber escutá-lo, tudo isso deve nos colocar em um dinamismo irreversível, que nos impulsione a uma conversão permanente. Uma experiência de Absoluto que seja capaz de relativizar tudo o mais. É essa a experiência de fé que dá sentido, capaz de trazer alegria!
“Minha querida mãezinha, apesar do esquecimento em que me tem, eu não a esqueço um instante. Pelo contrário, fico pen- sando que deve ser uma grande preocupação, já que tendo escrito três cartas, não recebi nenhuma resposta sua.” (C 42)
Teresa percebe a dificuldade, e por vezes certa confusão, a respeito do amor e do amar: entre o amor sincero e o próprio egoísmo – erroneamente chamado “amor”. Amar o outro, mesmo que exija sacrifício. Como uma pessoa pode aprender a amar de maneira madura e sincera? Descobrindo em si mesma o próprio valor e dignidade: fomos criados à imagem de Deus e como Seus filhos. Não temos necessidade de buscar a nossa identidade e nosso valor no sucesso, na grandiosidade aparente. Ser e não tanto ter. Podemos amar, porque somos amados antes por Aquele que é o próprio Amor.
“É verdade que não O vemos com nossos olhos do corpo. Mas Deus torna-se visível para nós pela fé. Antes, eu achava impossível enamorar-me de um Deus que não via, a quem não poderia acariciar. Mas hoje afirmo, com o coração nas mãos, que Deus compensa inteiramente esse sacrifício. De tal maneira a pessoa sente esse amor, essas carícias de Nosso Senhor, que parece tê-lo ao seu lado.” (C40)
Em seu caminho de crescimento e desenvolvimento de sua personalidade, Juanita assume e integra, de modo progressivo, seus dons pessoais com os valores autênticos e característicos de cada batizado e adquire a capacidade de controlar os próprios instintos e impulsos, ou seja, conjuga as necessidades de sua natureza com os valores que livremente elege. A partir do controle dos instintos, consegue empregar suas exigências como meio de busca dos fins e objetivos que dizem respeito ao seu bem total: torna-se mais livre e criativa. Suas capacidades gozam de liberdade e, por consequência, são disponíveis à ação da Graça.
“Sou feliz: sou a criatura mais feliz do mundo. Estou começando minha vida de céu, de adoração, de louvor e de amor contínuo.” (C 101)
Para tal experiência de fé, não são suficientes incrementar o tempo e os momentos de oração, multiplicar as celebrações litúrgicas e as práticas de piedade. É preciso ir além das regras e dos costumes. É preciso pedir incessantemente tal fé, acolhê-la no silêncio, ajudar seu crescimento com uma íntima oração pessoal, a escuta da Palavra de Deus, a Eucaristia e o sacramento da Reconciliação. Vemos isso em Teresa: na medida em que consegue integrar à sua personalidade o chamado de Deus, fortalece seu potencial de suportar coisas desagradáveis, o sofrimento e a renúncia:
“Meu caráter tornou-se violento e eu era presa de raivas ferozes, porém raras. Foi conosco uma prima de mamãe que não gostava de mim. Só mimava Rebeca. Com isso, eu sofria como não é possível imaginar. Custava-me obedecer, sobretudo quando me mandavam, por preguiça demorava a ir. Foi nessa época que Nosso Senhor mostrou-me o sofrimento. Meu papai perdeu uma parte da fortuna, e tivemos de viver mais modestamente.” (D 5)
Como uma criança (uma pessoa imatura) reage diante do que é desagradável, diante do sofrimento e da renúncia? Prevalece a ideia de um bem baseada no que é agradável, o que é importante para essa pessoa no aqui e no agora. Uma avaliação que é, antes de tudo, fundada na emoção e que desperta sentimentos, impelindo o indivíduo a agir sem fazer qualquer avaliação posterior, de caráter reflexivo. É normal que a criança aja assim porque ainda não desenvolveu a sua capacidade racional. De uma pessoa adulta e madura, espera-se que suporte o desprazer, o sofrimento e a renúncia. O aprendizado não foi apenas um fruto de um ato de reflexão: é necessário viver a experiência humana. Ela aprendeu na experiência humana da “ordinariedade” da vida.
“Com a enfermidade [apendicite] fiquei tão mimada que não podia estar só. Lucita estava doente e uma empregada foi fazer-lhe companhia. Então, tive inveja e comecei a chorar. Nosso Senhor me falou e me deu a entender quão abandonado e só estava no Tabernáculo. Disse-me que O acompanhasse. Então, deu-me a vocação.” (D 8)
O discernimento tem como objetivo levar a pessoa a adquirir um nível suficiente de convicção interna de que Deus a chama, e a determinado carisma, em uma comunidade específica. Supõe uma experiência de vida que proporcione um conhecimento de si mesmo. Esse conhecimento deve ser interpretado em uma chave de leitura vocacional.
Na busca pela maturidade, a pessoa aprende e decide o que deseja ser: consegue dominar a força das próprias necessidades e desejos, que são opostos aos seus valores. Tem consciência do conflito nela existente, e que a divide entre dois mundos que carrega em si: o mundo infinito de seus desejos e o mundo finito de suas limitações. A maturidade afetiva não exclui a tensão, mas aceita-a como uma oportunidade para crescer. Caminhemos um pouco mais com Teresa dos Andes:
“Hoje, desde que levantei, estou muito triste. Parece que, de repente, meu coração se parte. Jesus me disse que queria que eu sofresse com alegria. Que Ele havia subido ao Calvário e se havia deitado na cruz com alegria pela salvação dos homens. “Acaso não és tu que me buscas e queres parecer-te a mim? Portanto, vem comigo e toma a cruz com amor e alegria.” (D 15)
Talvez, aqui, uma pergunta possa ser colocada: seriam essas mudanças e conquistas o resultado de um caminho espontâneo, de modo semelhante a uma planta que, recebendo sol, água a nutrientes, no seu ciclo natural, alcançaria a plenitude? No homem, o desenvolvimento não se dá dessa forma. Uma consciência madura e não infantil deve ser antes provocada do que esperada. Características como flexibilidade, ser exigente e não permissivo consigo mesmo, evitando posicionar-se a partir de esquemas de punição e recompensa, precisam de estímulo e referências.
Se a vocação foi dada, foi para ser minha, por isso preciso tomar para mim algo que é meu: assumir, meter as mãos, pegar o peso, mas para continuar sendo o dom que ela é, preciso vive-la conforme Quem me deu. Se é dom, também o seu viver deve ser como dom: tudo, dado, esperado, confiado, inspirado, definido, movido, gerado e impulsionado por um Outro e não por mim, porque a natureza da vocação é ser dom. Meu cuidado deve ser de vivê-la como tal até o fim. A meu ver, este é o maior desafio do discernimento pessoal sobre a própria vocação: chegar a esse nível de consciência e de vida interior.
“Para maior humilhação contarei uma raivinha que tive. Foi tão grande que parecia que eu estava louca. Minha irmã e minha prima não quiseram tomar banho de mar conosco porque éramos muito pequenas. Desgostei-me porque me chamaram de criança e não queria ir, mas me obrigaram. Quando estávamos nos vestindo chegaram as meninas para apressar-nos, porém respondi que não me vestiria enquanto elas não fossem embora. Elas não quiseram sair e minha mãe disse para me vestir e eu, teimosa, não quis. Mamãe até me bateu… tudo inútil. Eu chorava. E era tanta a raiva que tinha, que queria voltar ao banho. Minha mãezinha começou a me vestir e eu continuava furiosa. Quando fiquei pronta me arrependi e fui pedir perdão à minha mãe, que estava muito triste por me ver assim e que ia embora para Santiago. Não iria ficar com uma menina tão raivosa. Ela não quis me perdoar, e eu chorava inconsolável. Não sei quantas vezes pedi perdão, até que minha mãe disse- -me que observaria qual a minha conduta daí por diante.” (D 9)
A capacidade de exteriorizar os sentimentos com clareza, mesmo aqueles que geram desconforto, de se submeter voluntariamente em meio a sua própria necessidade e saber esperar são sinais de que um caminho rumo à liberdade interior está em curso. Se a manifestação de sentimentos é necessária justamente para dar à vida cor e calor e torná-la expressão do que existe internamente, conseguir expor aquelas emoções mais custosas, como a agressividade, de maneira controlada, demonstra a presença de um equilíbrio dinâmico.
“Hoje tive de vencer-me muito. Tive raiva e sofrimento por desobedecer e fazer minha vontade. Aborreci-me e pensei que não tinha vocação. Que era uma ilusão, só uma ideia. Que me desesperaria depois, enfim, tantas coisas. Além disso, uma madre distribuiu doces para nós. E como me deu um pequeno, deu-me raiva e não o aceitei. E depois não aceitei o outro que me deu. Noto que sou muito orgulhosa. Porém dou graças a Deus que me iluminou com sua graça. Quero ser humilde, esquecer-me de mim mesma inteiramente.” (D 35)
Teresa é profundamente honesta consigo mesma ao admitir suas limitações. Percebe que sente raiva, por exemplo, característica de todo ser humano. Reconhecer as emoções em jogo é a primeira condição para superar os obstáculos e perseverar nas dificuldades. É sentir com clareza, porém buscar permanecer naquilo que são os sentimentos de Cristo. Não dar “razão” a sua humanidade, justificando-se ou, mesmo, tentando corrigir-se em juízos autorremissivos. A pessoa afetivamente madura não tem medo da própria agressividade; aceita-a e usa a sua força para atingir seus ideais. Tem a coragem de exprimir sua agressividade, mas não se deixa dominar por ela, manifestando-a com moderação.
“As meninas da classe brincaram tanto comigo que quase chorei. Depois do recreio disse-lhes que haviam ultrapassado os limites, que não brincassem assim. Então quase me aborreci, porém depois ficamos de bem. Custa-me aguentar brincadeiras. Fico com raiva.” (D 27)
Esse acolhimento do que passa em seu interior permite que Teresa tenha a potencialidade de viver na verdade e não no terreno movediço das autoilusões. Adquire a capacidade de tolerar a ansiedade, fator normal da vida, aceitando a realidade de modo responsável. Assim, não precisa fugir de si mesma para o mundo das ilusões e fantasias.
“A Virgem ajudou-me a limpar meu coração de toda imperfeição. No mês do Sagrado Coração, modifiquei meu caráter por completo. Não brigava com os meninos. Às vezes mordia os lábios e apressava-me em vestir-me. Ninguém me fazia perder a paciência.” (D 5)
Por fim, temos o desenvolvimento de sua autonomia afetiva. Experimenta uma profunda e larga liberdade interior, que transparece na carta ao pai, nas chamadas de atenção a Lucho e em todas as demais relações que Teresa cultivou antes e que as manteve após entrar no Mosteiro do Espírito Santo, nos Andes.
Teresa entende que sua identificação com Cristo se realiza por meio de um carisma concreto: o Carmelo Teresiano. Toda a sua pessoa – mente e coração – emoções e intelecto, com sua forma de ser, e de modo específico, como ela se deixa transformar a partir da sua relação com Cristo. Nesse percurso interior, trilhado por ela e proposto para nós, a pergunta que ecoa é: “Quem desejo ser a partir do chamado de Deus?” Não é a interpretação de um papel, o cumprir determinada função, alcançar um êxito. A resposta é o que desejo ser: modelar-me profundamente, cooperando com a Graça de Deus, o processo de conformar–me a Jesus e assimilar seus sentimentos. Nenhuma dessas transformações é possível sem o elemento da fé, de uma fé radical. A fé radical é uma descoberta, aceitação gradativa e viva da realidade de Deus e do homem à luz da pessoa de Jesus Cristo. A fé radical é uma experiência de confiança no Senhor, para além das garantias e razões humanas. Mas ela é capaz de introduzir o homem no percurso de assimilação dos sentimentos de Cristo (Fl 2, 5). Reconstruir a própria vida a partir da fé. É um dar passo por passo. Uma entrega progressiva, cujo êxito final também é graça e não “sucesso pelo investimento pessoal”: a pureza interior é dom e não “êxito”.
“Já não prefiro sentir fervor ou não senti-lo. Abandono-me ao que Jesus quiser. Jesus meu, sou toda tua. Entrego-me por completo à tua divina vontade. Dá-me a cruz, porém dá-me força para levá-la.” (D 34)
Fonte: Revista Monte Carmelo, ocds