Por: Mons. André Vital Félix da Silva, SCJ
Texto também disponível em: dehonianosbre.org
A perícope evangélica deste Domingo nos faz refletir sobre a nossa missão de cristãos no mundo, isto é, as consequências práticas da nossa adesão ao Evangelho, seguindo os passos de Jesus. O evangelho de hoje não nos coloca apenas diante de um apelo vocacional, mas a Palavra de Jesus, se acolhida com coragem e honestidade, favorecer-nos-á um verdadeiro ato penitencial: o reconhecimento de que, mesmo aceitando ser trabalhadores na colheita do Senhor, ainda trabalhamos pouco, pois há muitas ovelhas sem pastor. Por outro lado, não podemos negar o cansaço do nosso muito fazer; contudo, mais do que por esforço nosso, o Reino se difunde à medida que testemunhamos com convicção o que Deus faz em nosso favor: Ele é o Senhor da vida, que nos é “dada de graça e que de graça devemos dar”.
A expressão usada por Mateus para traduzir a reação de Jesus diante das multidões: “Compadeceu-se delas”; não significa apenas uma constatação ou uma sensibilidade afetiva frente a uma situação calamitosa, mas indica uma tomada de decisão que implica atitudes concretas. Diante de um povo (cansado e abatido), o Mestre Jesus não tem apenas palavras bonitas de consolo e resignação, mas propõe um modo de ser que provoca mudanças existenciais e abre um caminho de verdadeira transformação de mentalidades e atitudes, o que tornará possível a colheita abundante dos frutos do Reino, que Ele mesmo anunciou com suas palavras e implantou com sua vida, assumida com coerência até os extremos: entregando-se pelas suas ovelhas. “Compadecer-se” em grego (splanchnidzo) traduz o “ser misericordioso” do hebraico (raham), portanto, é uma reação mais do que afetiva ou sentimental, é um movimento visceral, como o sentimento da mulher que tem no seu ventre a vida em gestação e, por isso, a envolve com carinho e cuidado, e quando ameaçada é capaz de se sacrificar por ela, a fim de que não morra.
Destarte, Jesus não faz apenas constatação de uma situação deplorável, mas é tocado interiormente diante do dom mais precioso do Pai que se encontra em risco, por causa do descuido e negligência daqueles que receberam a nobre missão de serem os cuidadores dela: os pastores de Israel.
Ao reconhecer as multidões “cansadas e abatidas”, Jesus evidencia as causas de tal situação: “como ovelhas sem pastor”. Os termos gregos traduzidos por “cansadas” e “abatidas” têm uma gama de outros significados, que ajudam a perceber o alcance da denúncia que Jesus faz em relação aos pastores infiéis (pode-se entrever nesse contexto a contundente crítica de Ez 34). As ovelhas estão “cansadas e abatidas” porque foram abandonadas por seus pastores; não são apenas ovelhas que se desgarraram e se perderam, mas foram deliberadamente deixadas de lado; depois de terem sido exploradas, foram descartadas. Em grego “cansadas” (eskulmévoi) vem do verbo (skúllo) que significa literalmente “esfolar”, “tirar a pele”. Enquanto que “abatidas” vem do verbo (ripto) que significa “jogar no chão”, “dar coice”, “espezinhar”. Portanto, mais do que uma situação de cansaço físico ou psicológico, Jesus denuncia que o rebanho de Deus está sendo aviltado na sua dignidade e entregue à morte. Por isso, coloca-se como o verdadeiro e bom Pastor, enviado pelo Pai para recuperar a vida e a dignidade de suas ovelhas, o seu novo povo que será conduzido pelos pastores segundo o coração do próprio Senhor: “Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração” (Jr 3,15).
A escolha dos 12 discípulos representa a atitude mais concreta de Jesus diante das necessidades daquelas multidões. Através dos 12 discípulos, uma referência simbólica às raízes do Povo de Israel, Jesus continua a sua missão, pois concede-lhes plenos poderes para realizar o que Ele mesmo fazia “percorria todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 9,35).
Elegendo os 12 discípulos, Jesus constitui pastores para aquelas multidões cansadas e abatidas. Contudo, para não recaírem na mesma infidelidade dos antigos pastores, os discípulos devem crescer na consciência de três aspectos fundamentais da sua vocação-missão: 1. A vocação deles é uma resposta do Pai à oração da comunidade, portanto, não são meros funcionários, contratados para uma atividade, em vista de recompensas materiais ou privilégios; 2. A vocação deles, uma vez gerada pela oração, não poderá subsistir sem a oração, isto é, sem a comunhão com Jesus, por isso o Mestre os chamou para perto de si (pros–kalesámevos: “chamados a si” Mt 10,1); 3. A vocação deles é um dom e, por isso, tudo o que fizerem (missão) deve testemunhar esta verdade: “De graça recebeste, de graça deveis dar”.
Ao elencar cada um dos 12 discípulos, Mateus não está fazendo uma lista de chamada, mas indicando que a missão se realiza com a colaboração de pessoas concretas, no horizonte da história com suas vicissitudes, e que mesmo a vocação sendo um dom do Pai, ela não tira a responsabilidade e liberdade de quem foi chamado. Esta lista não remonta a curriculum vitae aperfeiçoado ou maquiado, capaz de garantir a contratação num posto de trabalho, mas descortina a realidade concreta de cada um dos 12 discípulos de ontem e de sempre, condição fundamental para ser vocacionado, pois reconhece um longo caminho a ser feito. Estar incluído na lista não significa ser fiel ao chamado nem garante colaboração na colheita. Há quem, apesar de suas limitações, resistências, negações momentâneas, deixa-se orientar pelo Mestre e é confirmado na missão (os 11), mas há também quem está na lista e recebeu todas as condições para a missão, mas optou por arrancar a pele das ovelhas, explorá-las ao máximo e abandoná-las, tornando-se traidor do Pastor e do rebanho (Judas).